Projeto não engessa o conteúdo dos contratos, trazendo mais proteção para o consumidor do setor de seguros
Segundo o art. 36, alínea “e”, do DL 73/66, as condições contratuais de um plano de seguro devem ser registradas na Superintendência de Seguros Privados (Susep) antes da sua comercialização. Segundo essa norma, é competência da Susep “examinar e aprovar as condições de coberturas especiais, bem como fixar as taxas aplicáveis”.
Plano de seguro, conceito que o DL 73/66[1] e a regulamentação administrativa usam sem definir,[2] corresponde às condições de futuros contratos de seguro celebrados por uma seguradora – a autora do plano – com seus segurados. Pelo DL 73/66, devem ser registradas as condições contratuais em abstrato, de um modelo de contrato, e não as condições de um contrato de seguro em concreto, já celebrado.
A obrigação de registrar as condições dos planos de seguro perante a autoridade supervisora não é singular. Entretanto, poucos países estabelecem a mesma exigência de forma ampla.
Na Europa, a questão está nos artigos 21, 181 e 182 da Diretiva Solvência II, que harmoniza a supervisão da atividade seguradora. Os Estados-membros podem exigir o registro das condições de seguros obrigatórios (art. 181/2), não o registro das condições de seguros não obrigatórios em geral (arts. 21/1, 181/1 e 182).
As autoridades supervisoras podem, porém, exigir:
- que as seguradoras mantenham um registro eletrônico atualizado dos contratos de seguro,[3]
- o registro das condições gerais e especiais, bem como da bases técnicas, de seguros de pessoas não obrigatórios, para verificar o cumprimento dos princípios atuariais[4] e;
- a comunicação não-sistemática “das condições gerais e especiais das apólices, das tarifas, das bases técnicas e dos formulários e outros impressos” dos seguros não obrigatórios em geral (arts. 181/1 e 182 da Solvência II). O objetivo é permitir que o regulador tenha informações relevantes à supervisão das operações,[5] não lhe atribuir o dever de vetar o conteúdo de todos e quaisquer seguros comercializados.
Outra questão é o significado da aprovação prevista no art. 36, “e”, do DL 73/66. Houve quem argumentasse que deveria haver uma presunção relativa de que as cláusulas de um contrato de seguro seriam válidas e eficazes, por terem sido aprovadas pela Susep.[6]
Essa leitura de aprovação, que conotaria achar bom, ser favorável, concordar com, foi rejeitada. A aprovação do art. 36, “e”, do DL 73/66 tem apenas conotação formal – significa não obstar ou permitir a comercialização do seguro.
Por essa razão, primeiro, a própria Susep, para precisar o conteúdo da sua competência, obriga as seguradoras a divulgarem, na proposta de seguro e nas condições contratuais, que “o registro do produto é automático e não representa aprovação ou recomendação por parte da Susep” (eg., art. 5º, II, da Circular Susep 621/2021; art. 10, II, da Circular Susep 667/2022).
Segundo, a Susep pode estabelecer que o registro do plano, segundo requisitos hoje previstos na Circular Susep 657/2022, tenha por efeito a permissão à comercialização, ressalvando apenas algumas espécies de planos à análise individualizada (e.g., seguro de pessoas com cobertura por sobrevivência). Assim, a regulamentação especifica a forma como se exterioriza a autorização para comercialização, ora automática, ora não.
Terceiro, não se admite que a Susep, o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP) ou mesmo a Presidência da República dispensem de aprovação todos ou alguns planos de seguro, como se tenta fazer no decreto regulamentador do DL 73/66[7] e na Resolução CNSP 407/21.[8]
Até que o artigo 36, “e”, do DL 73/66 seja revogado ou modificado, a competência da Susep não pode ser suprimida por regulamentação administrativa sem violar a primazia da lei – não se admite a deslegalização, ou seja, a derrogação de parte de lei por regulamento administrativo.[9]
Questão diversa é se a autorização estatal prévia à comercialização de todos os planos de seguro deveria ser obrigatória. Caso haja consenso quanto à sua desnecessidade total ou parcial, no contexto brasileiro, deve-se alterar o art. 36 do DL 73/66 por lei complementar, uma vez que a permissão à comercialização de planos de seguro diz respeito à supervisão da atividade seguradora.
É nesse contexto que o PLC 29/2017 se propõe a regrar a formação, a execução e a extinção de contratos de seguro, inclusive situações de:
- conflito entre o texto das cláusulas de um contrato e as condições do plano de seguro – ie., as registradas na Susep –, e de;
- formação do contrato de seguro sem que o segurado saiba o seu conteúdo.
Para solucionar a primeira questão, o art. 9, §2º estabelece que “se houver divergência entre a garantia delimitada no contrato e a prevista no modelo de contrato ou nas notas técnicas e atuariais apresentados ao órgão fiscalizador competente, prevalecerá o texto mais favorável ao segurado.”
Em primeiro lugar, o art. 9º, §2º incide apenas no caso de conflito entre um modelo de contrato registrado na Susep (um plano de seguro, na dicção da regulamentação administrativa) e as cláusulas de um instrumento de contrato de seguro em concreto (e.g., apólice, bilhete, declaração, certificado). Há divergência, por exemplo, se um risco está coberto nas condições gerais do plano registrado e excluído na apólice entregue ao segurado.
A regra não obriga que seja feito o registro, nem se pode extrair essa obrigatoriedade do seu conteúdo implícito, pois o artigo de uma lei ordinária, que trata do contrato de seguro, estaria invadindo campo reservado à lei complementar. Por isso, ele é compatível com eventual desnecessidade de registro em relação a todos ou a alguns planos de seguro, situação em que sua eficácia seria ainda mais restrita.
Por mais que a hipótese de incidência do art. 9, §2º seja rara (ie., que no registro do plano constem condições diferentes daquelas incorporadas ao instrumento do contrato), ela não é impossível e são inúmeros os exemplos de regras para situações excepcionais.[10] De toda forma, a regra é relevante, porque traz uma solução mais adequada do que resultaria das regras gerais do Código Civil.
Se o registro prévio é obrigatório ao menos para alguns planos de seguro, da comercialização de um seguro sem o registro prévio de suas condições, ou distinto do registrado junto à autoridade, resultaria a nulidade do contrato, porque não se praticou uma solenidade essencial prévia ao negócio (art. 166, V, Código Civil), tal como no contrato de franquia celebrado sem a entrega prévia da Circular de Oferta de Franquia (art. 2º, Lei 13.966/2019). Excetuando a regra geral, a lei especial simplesmente faz prevalecer o conteúdo mais favorável ao segurado.
Além disso, por subtrair a eficácia de cláusulas que contrariam, em prejuízo do segurado, o disposto nas condições contratuais dos planos de seguro registrados na Susep, disponíveis à consulta pública, onde os interessados podem buscar informações, o dispositivo tutela a confiança no mercado. Seguradoras que anunciam uma coisa (nos planos) e entregam outra (nos contratos) não levam vantagem sobre aquelas que, nos contratos que celebram, incorporam as condições dos planos que registram, como estabelece a lei de controle.
A prevalência do texto mais favorável ao segurado, se houver divergência entre o instrumento e o registrado, nem impede que contratos de seguro tenham condições particulares, nem obriga que todas as condições particulares registradas em um plano sejam aplicadas a todo e qualquer seguro.
Nessas hipóteses, o art. 9, §2º sequer incidiria, pois não haveria incompatibilidade entre, de um lado, o texto das cláusulas do contrato de seguro, e, do outro, o texto do plano de seguro registrado na Susep. Haveria simples determinação do conteúdo contratual em concreto, sem divergência textual entre o registrado e o inscrito no instrumento do seguro.[11]
A segunda questão – formação do contrato de seguro sem que o segurado saiba o seu conteúdo – é solucionada pelos artigos 48 e 49, §2º, do PLC 29/2017, também usando condições contratuais do plano de seguro registrado na Susep.
O primeiro dispositivo prevê que “o proponente deverá ser cientificado com antecedência sobre o conteúdo do contrato, obrigatoriamente redigido em língua portuguesa e inscrito em suporte duradouro, nos termos do § 1º do art. 42”.
E se isso não ocorrer? Para solucionar essa questão, dispõe o art. 49, §2º que:
“O contrato celebrado mediante aceitação tácita será regido, naquilo que não contrariar a proposta, pelas condições contratuais previstas nos modelos que vierem a ser tempestivamente depositados pela seguradora no órgão fiscalizador de seguros, para o ramo e a modalidade de garantia constantes da proposta, prevalecendo, quando mencionado na proposta o número do processo administrativo, o clausulado correspondente cuja vigência abranja a época de contratação do seguro, ou o mais favorável ao segurado, caso haja diversos clausulados depositados para o mesmo ramo e modalidade de seguro e não exista menção específica a nenhum deles na proposta”.
Assim como a hipótese de incidência do art. 9, §2º, a do art. 49, §2º é restrita. Caso o contrato de seguro se forme por aceitação tácita sem que segurado saiba o seu conteúdo, rege-se, subsidiariamente – ie., “naquilo que não contrariar a proposta” – pelas condições dos planos registrados na Susep. Sem essa regra, haveria uma lacuna: o conteúdo de um contrato de seguro já formado, o que está garantido e o que está excluído, seria indeterminado.
Se houver vários planos registrados na Susep, persistiria a indeterminação, de modo que o art. 49, §2º estabelece o critério de desempate: sempre que a proposta referir o processo administrativo correspondente ao registro de um plano, o que em regra acontece (art. 6º da Circular Susep 657/2022), são as condições vigentes “à época da contratação do seguro”. Apenas caso a proposta não faça referência a qualquer plano e a mesma seguradora tenha vários planos registrados na Susep, prevalece o mais favorável ao segurado.
Com isso, a lei não estabelece requisito de registro, matéria afeita ao DL 73/66 e à sua regulamentação. Leva em conta que o registro existe, o que é a realidade incontestável, e dá soluções para problemas práticos apoiando-se na lei de controle.
Em suma, o PLC 29/2017 não engessa o conteúdo dos contratos. O art. 9º, §2º, estabelece uma regra excepcional de solução de conflito entre o texto das cláusulas do instrumento contratual e o modelo apresentado à Susep, quando o registro prévio à comercialização é exigido. Nesses raros casos, prevalece a que for mais favorável ao segurado, afastando a nulidade prevista no art. 166 do Código Civil e promovendo a transparência no mercado.
O art. 49, §2º prevê a aplicação subsidiária do plano registrado na Susep ao contrato formado por aceitação tácita, sem que o segurado tenha prévio conhecimento comprovado do conteúdo negociado, como ocorre quando se forma o contrato e só depois a apólice é exibida pela seguradora, evitando-se dúvida sobre que tipo de cláusula deve reger a relação de seguro.
[1] Arts. 36 e 78 do DL 73/66.
[2] Eg., Art. 1º da Circular SUSEP 662/2021; Art. 14 da Circular SUSEP 667/2022; Art. 2º da Circular SUSEP 657/2022; Art. 2º, §1º, da Circular SUSEP 637/2021.
[3] E.g., em Portugal, art. 41º, n. 1, da Lei n.º 147/2015. No Brasil, o registro equivalente é o “Sistema de Registro de Operações – SRO”, previsto na Resolução CNSP nº 383/2020, em fase de implementação.
[4] E.g., na Alemanha, §143 da Lei de supervisão de seguros; na Suíça, art. 4, n. 2, “r”, da Lei de supervisão de seguros.
[5] Nesse sentido, DREHER, Meinrad. Treatises on Solvency II. Berlin: Springer, 2015, p. 352.
[6] CERNE, Ângelo Mário de Moraes. O seguro privado no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1973, p. 30-31.
[7] Art. 8º do Decreto 60.459/1967, modificado pelo Decreto 3.533/2000 justamente para esse fim.
[8] Arts. 7º e 24 da Resolução CNSP 407/21.
[9] Cf., por exemplo, o julgamento da ADIn nº 1.668, Plenário, rel. Min. Edson Fachin, j. em 01.03.2021.
[10] No Código Civil, são inúmeros os exemplos: da morte presumida sem decretação de ausência (art. 7º) à recepção tardia da aceitação (art. 430), passando pela dedução, da indenização devida pelo alienante ao adquirente evicto, das benfeitorias feitas pelo alienante que já tenham sido indenizadas pelo terceiro evictor (art. 454). No capítulo de seguros, os arts. 759, 760, 764, 769, 770 ou 773, todos da parte geral, raramente são aplicados, embora devam constituir existindo para coerência do regime.
[11] Essa determinação do conteúdo do contrato é expressamente admitida no art. 56 do PLC 29/2017, ao prever que “As condições particulares do seguro prevalecem sobre as especiais e, estas, sobre as gerais”.
Fonte:Jota Info