Enquanto precipitam notícias popularescas sobre a culpa e o dolo dos administradores e consultores da Vale, os seguros de responsabilidade civil que deveriam amparar prontamente todas as vítimas de Brumadinho são empurradas com a barriga.
Ficam para depois os que perderam seus pais e filhos, os que ainda se encontram sob risco de perderem sua vida ou integridade física e os que perderam seus bens ou tiveram cessadas suas atividades e negócios. Praticamente todo mundo se põe a discutir se a causa do acidente foi o dolo indireto, a culpa grave, a culpa simples ou o caso fortuito.
O parágrafo único do artigo 927 do Código civil dispõe claramente que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, (…) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”
Nessa toada, algumas seguradoras aproveitarão a polêmica para argumentar que nada devem porque suas apólices de responsabilidade não cobrem o ato doloso. A segunda razão é que o seguro de responsabilidade civil não é apenas, nem principalmente, uma garantia para preservar o patrimônio do segurado que o contrata. Ele é uma garantia para a indenização das vítimas. Gostem ou não alguns, o nosso Código Civil cuidou de dizer, no art. 787, qual a função desse tipo de seguro. Assim, a própria lei o define como aquele destinado a garantir o pagamento devido às vítimas. Literalmente: “No seguro de responsabilidade civil, o segurador garante o pagamento de perdas e danos devidos pelo segurado a terceiro.” Portanto, o seguro é das vítimas e de seus beneficiários e não uma coisa de interesse exclusivo dos segurados que os contrataram.
A dualidade de interesses protegidos pelos seguros de responsabilidade civil é velha conhecida nossa e já chegou até mesmo a gerar o reconhecimento, pelo STJ, da ação direta das vítimas contra as seguradoras de responsabilidade civil. É o que se vê na Súmula 529 do STJ: “No seguro de responsabilidade civil facultativo, não cabe o ajuizamento de ação pelo terceiro prejudicado direta e exclusivamente em face da seguradora do apontado causador do dano”. Em suma, o STJ decidiu que a vítima pode acionar diretamente a seguradora, apenas exigindo que também acione conjuntamente o segurado. Isso porque a súmula cuida dos seguros automobilísticos e, como sabemos, a responsabilidade nos acidentes de trânsito é subjetiva e não objetiva, daí fazendo sentido exigir a participação do segurado no polo passivo da demanda proposta pela vítima diretamente contra sua seguradora.
Ora, no caso de responsabilidade objetiva, como acontece com o rompimento da barragem de Brumadinho, nem esse litisconsórcio passivo entre seguradora e segurado faria qualquer sentido. A responsabilidade é objetiva. Por isso é que os seguros devem funcionar prontamente, sem a discussão de culpa. Se posteriormente for apurado que o dolo do segurado foi a causa do acidente, então, as seguradoras que se voltem contra o segurado a fim de que este lhes restitua o que pagou às vítimas.
As autoridades públicas, no entanto, nunca despertam para isso. Elas, que chegam a dizer que intervirão para afastar diretoria de sociedades empresariais privadas, como a Vale, nunca ousaram sequer determinar que a responsável pelo acidente apresente todas as apólices de seguro de responsabilidade civil contratadas no interesse das vítimas. Aliás, é isso que o ministro Villas Bôas Cueva, do STJ, veio advertindo recentemente, ao apreciar questão em que se discutia se a embriaguez do segurado pode prejudicar a vítima: “deve ser dotada de ineficácia para terceiros (garantia de responsabilidade civil) a cláusula de exclusão da cobertura securitária na hipótese de o acidente de trânsito advir da embriaguez do segurado, visto que solução contrária puniria não o causador do dano, mas as vítimas do sinistro, as quais não contribuíram para o agravamento do risco” (voto no Recurso Especial 1.485.717/SP, dezembro/2016).
Além disso, todo mundo no meio jurídico e de seguro faz vistas grossas para o artigo 9.º da Lei do Dpvat (Lei n.º 6.194, de 19 de dezembro de 1974.): “Nos seguros facultativos de responsabilidade civil dos proprietários de veículos automotores de via terrestre, as indenizações por danos materiais causados a terceiros serão pagas independentemente da responsabilidade que for apurada em ação judicial contra o causador do dano, cabendo à Seguradora o direito de regresso contra o responsável.” Simples assim, no próprio ambiente da circulação de veículos, por incrível que pareça, a lei manda serem indenizados os danos materiais independentemente da apuração de culpa e remetem as seguradoras à discussão com os segurados causadores do acidente, provendo efetiva proteção para as vítimas.
A posição adotada pelo ministro Villas Boas, como se vê, faz total sentido não apenas pelo que prevê o mencionado art. 787 do Código Civil, mas pelo fato de que o Direito já captou a diferenciação das condutas entre os diferentes titulares de interesses garantidos pelos seguros, o que acontece também, por exemplo, quando as seguradoras tentavam se livrar de indenizar o locador proprietário do edifícios segurado quando os locatário dolosamente ateassem fogo no prédio para receber indenização pelas suas mercadorias encalhadas. Depois de alguma hesitação, os tribunais passaram a condenar as seguradoras a indenizarem os donos dos imóveis incendiados, cabendo àquela se voltarem contra os contratantes dos seguros para se ressarcirem junto a estes devido à falta de cobertura decorrente da sua conduta criminosa.
O que importa por ora é que, por qualquer angulo que se examine, o interesse das vítimas no seguro de Responsabilidade Civil é evidente. Sendo assim, como poderiam as vítimas, ou quem as represente, acionar as seguradoras se desconhecem os contratos de seguro celebrados, se não tiverem amplo acesso às apólices?
Essa é uma questão que se põe desde há muitos anos no Brasil, especialmente depois dos acidentes com as aeronaves comerciais ocorridos a partir do voo 402 da TAM, em 1996. Entretanto, os seguros continuam até hoje nas gavetas dos segurados e das seguradoras, longe dos olhos dos principais interessados. As próprias seguradoras, nesse cenário em que as vítimas são afastadas do processo securitário, ficam à mercê dos entendimentos dos seus resseguradores, alastrados não apenas territorial como nas suas experiências culturais e jurídicas. Como grande parte das responsabilidades financeiras pelos seguros são pulverizadas por meio dos resseguros, as nossas seguradoras tornam-se reféns das resseguradoras. Novamente aqui, caberia reclamar a atuação do Estado brasileiro, por meio da Susep, determinando que num caso como o de Brumadinho os resseguradores cooperassem com as seguradoras que emitiram as apólices de responsabilidade civil por meio do pronto pagamento às mesmas das recuperações de resseguros necessárias para que as mesmas seguradoras, também de imediato, constituíssem as provisões e começassem a indenizar as vítimas, logicamente até o limite dos seguros contratados.
Lamentavelmente, nada acontece para além do mise-en-scène e as vítimas se transformam em notícia, tão somente.
Embora o sistema jurídico já comporte uma solução diferente da que está na pauta das seguradoras, do Estado e dos próprios responsáveis, vale lembrar que tramita no Congresso Nacional, durante os últimos 14 anos, um projeto de lei que uma vez aprovado facilitaria bastante a vida das vítimas das catástrofes como Mariana e Brumadinho. Trata-se da primeira lei de contrato de seguro brasileira, uma lei especial da qual praticamente todos os países já dispõem. Entre os dispositivos desse projeto, que veio sendo bloqueado pelo Ministério da Fazenda dos governos Lula e Dilma, apesar do apoio do então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, encontram-se alguns que facilitariam bastante a vida das vítimas de Brumadinho e dos seus beneficiários. O projeto além de reconhecer e prestigiar os interesses diretos dos prejudicados nos seguros de responsabilidade civil, manda serem exibidas aos interessados as apólices contratadas e todas as suas alterações, assim como todos os documentos produzidos durante a regulação dos sinistros, acabando com a caixa preta que só prejudica a imagem e a função dos seguros no Brasil.
*Ernesto Tzirulnik, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro
Fonte: Estadão